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2017 | TANTO BARULHO POR NADA

Sandro Ka e seus jogos afetivos
Carlos Trevi, Artista visual e gestor cultural

Sandro Ka nasceu Sandro Ouriques Cardoso em 28 de julho de 1981, na cidade de Porto Alegre, RS. Aos vinte anos, decidiu mudar sua assinatura. Reduziu o sobrenome para o sonoro Ka, como um estalo, um estampido, um sobrenome para alguém com poderes super.

Filho dos gaúchos Sandra Ouriques e José Bragatto Cardoso, recebeu da mãe a versão masculina do nome e do pai a intenção malograda de homenagear o avô, Ismael. Brasileiro na essência, Sandro é herdeiro da mistura de índios, africanos e europeus. Recebeu dos pais o estímulo ao desenho e da mãe a aptidão para o ofício. Aos três anos de idade, já era reconhecido pela habilidade no traço, sendo orientado a se inscrever num curso de artes tão logo iniciou o jardim de infância. Na pré-adolescência, participou de um curso de história em quadrinhos neste mesmo museu que abriga, em duas salas, esta mostra. Na primeira sala, figuram representativos trabalhos da sua produção tridimensional e, na segunda, sua pesquisa recente: as instigantes paisagens impressas em jogos quebra-cabeças.

Além do desenho, suas paixões de infância sempre ocuparam o lugar da fantasia, do jogo e do faz de conta. Quadrinhos, super-heróis, personagens de desenhos animados: tudo o fascinava.  Um fascínio que vinha no rastro da cultura pop, da TV, da produção em escala industrial, do acúmulo, do preservar e do colecionar. Entre as brincadeiras de criança, os jogos do guardar, cuidar, exibir, reunir peças, montar novos cenários e novas possibilidades eram constantes.

Melhor aluno da sua turma no magistério, gostava mais de inventar meios criativos para trabalhar conteúdos do que, propriamente, ensinar. Depois, iniciou sua vida acadêmica na UFRGS, onde recebeu o grau de Mestre e, atualmente, é doutorando em Artes Visuais.

A descoberta dos toys surgiu quando começou a aprofundar seus conhecimentos sobre artistas, a arte e todas as suas possibilidades contemporâneas, permitindo-se subverter materiais e oferecendo novos usos para objetos do cotidiano. Alfredo Nicolaiewsky, Bianca Knaak, Eleonora Fabre, Lia Menna Barreto, Nelson Leirner e Walmor Corrêa são alguns dos artistas e pesquisadores que influenciaram o olhar de Sandro Ka, evidenciados no seu dizer: “os quais eu queria ser, me filiar, estabelecer vínculos”. A partir daí, seu movimento é direcionado para a cultura popular, para a cultura de massa como repertório imagético e, nas suas criações, a apropriação tornou-se procedimento de ação enquanto a ironia foi uma linguagem constante.

Seus trabalhos encantam à primeira vista, pois são carregados da afetividade que, até inconscientemente, temos com relação a tudo o que nos rodeia. Brinquedos, peças de gesso, bolinhas de plástico, porta-joias, miniaturas, reproduções: os mais diversos objetos interessam ao artista, são poeticamente vistos “como um convite para uma conversa para o estabelecimento de novas relações”. São relações únicas, individualizadas, atentas às peculiaridades específicas que cada objeto carrega em si, ainda que fabricado industrialmente em milhares de cópias.

Como novas experiências, surgem os quebra-cabeças: apresentados ineditamente nesta exposição, marcam o início de suas recentes investigações. São quebra-cabeças de imagens comuns, familiares. Imagens que convocam e deslocam o espectador para outros lugares. Lugares da memória. Dezenas de lugares com os mesmos atributos e elementos que parecem se fundir em um só. Um jogo de memórias para jogar com as lembranças. Um jogo dentro do jogo. Um jogo de composições infinitas, tal qual uma explosão artificial, que apenas alguém com poderes super pode reunir para formar uma imagem original, única, contemporânea, mas carregada do afeto que nos conforta. Um jogo Sandro Ka.

Texto de apresentação da exposição Tanto Barulho por Nada,

MARGS, Porto Alegre/RS, 2017.

Tanto Barulho por Nada
Ana Albani de Carvalho, Curadora, doutora em Artes Visuais e professora (PPGAV/IA/UFRGS)

Um dos pilares fundamentais do edifício conceitual moderno se sustenta no mito que associa arte à seriedade, sobriedade, ausência de ornamentos considerados supérfluos e à apresentação sincera dos procedimentos e materiais – como signos de verdade, densidade expressiva e amplitude da experiência estética. No campo da arte, o vulcão despertado pelas tensões da vida social contemporânea cobriu de cinzas e de fumaça as paredes outrora brancas e imaculadas dessa estrutura modernista, agora expostas como carcaça e ruína. Ao mesmo tempo, abrem-se as fronteiras entre os territórios consagrados às artes, às ciências, à indústria cultural, em processos de mestiçagens quantos aos temas, aos procedimentos e aos vínculos com o mercado.

Na arte contemporânea, mais precisamente, diferentes propostas jogam com o humor e a ironia como estratégias para atiçar a brasa do pensamento crítico, seja no espectador, seja na instituição que acolhe a obra e a exposição. Em Tanto barulho por nada, Sandro Ka lança mão dessa poderosa ferramenta e propõe jogos de montagens que, propositalmente, ferem as regras estéticas do “bom-gosto” e as definições convencionais para o que entendemos como “obra de arte”. Estatuetas de gesso e porcelana, bonequinhos de plástico: são objetos diversos que podemos encontrar em qualquer loja – made in China – de qualquer cidade, que constituem o repertório explorado pelo artista.

A interação e os cruzamentos entre diferentes áreas da cultura visual contemporânea e o curto-circuito entre o popular e o erudito observado nos trabalhos de Sandro Ka não eliminam a necessária atenção ao debate intrínseco à história da arte. Seus procedimentos fundam-se nos princípios da apropriação, na esteira do ready-made dadaísta e nos marcos da Pop Art, tendo a estratégia da assemblage como fio condutor dos trabalhos reunidos em Tanto Barulho por Nada. Convém lembrar que as montagens por assemblage, isto é, por combinação entre fragmentos, materiais e objetos de diferentes procedências em um território comum, configuram uma via crítica para a discussão sobre a linguagem da escultura e para a expansão dos seus limites enquanto categoria artística através da questão do objeto. O objeto, ao cruzar as fronteiras do campo artístico, coloca em cena o debate sobre a importância do fazer, do lado “artífice” do trabalho de arte, da marca da mão do artista como condição de autenticidade da obra. O paradigma da exclusividade da função estética também é convocado pela arte objetual, na medida em que o objeto traz a marca do utilitário e da realidade sociológica de suas funções enquanto mercadoria. No caso dos objetos e imagens escolhidos por Sandro Ka, de modo mais específico, a ideia de banalidade ou de lugar comum é agregada, o que conduz ao pensamento sobre o lugar e ao valor conferidos à Arte e à Cultura (assim mesmo, com iniciais em maiúsculas) pela sociedade contemporânea.

Por sua vez, o que um artista faz enquanto arte – a intencionalidade que guia suas opções por determinados materiais, procedimentos, linguagem, temas e conceitos – não busca direcionar, de modo fechado e direto, a recepção por parte do público espectador. Neste sentido, é possível considerar que a arte contemporânea opera com a noção de dissenso, apresentada pelo filósofo Jacques Rancière, como “uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sob as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência”[1]. Importa mais desacomodar o olhar, a produção de sentidos, os lugares de poder sobre quem pode ou não determinar o que é arte, o que é belo, o que há de verdade ou ficção em cada narrativa e em cada narrador.

O procedimento de montagem, do qual Sandro Ka lança mão em seus objetos e quebra-cabeças, se converte em um “princípio de construção”. Nos termos pensados por Adorno, afirmar algo como construção equivale a colocar a ênfase na parte do processo e não na “unidade” que poderia resultar em um produto finalizado, no qual as diferenças terminariam aplainadas. A montagem que afirma o caráter de construção – seja das narrativas, seja do objeto – da imagem ou mesmo do lugar ocupado pelo espectador conduz a uma “síntese que se mantém pela evidência da diversidade” e das tensões entre os diferentes elementos que compõem cada peça exibida no recinto da galeria.

As montagens apresentadas em Tanto barulho por nada ao mesmo tempo em que manifestam uma crítica implícita aos excessos da sociedade de consumo – e à sua lógica voraz, que a tudo transforma em espetáculo, em mercadoria e, em seguida, em esquecimento – e também reverberam em nossa memória afetiva. Em um (re)canto de nossas lembranças e de nossas gavetas, alguns desses objetos e imagens repousam, esmaecidos. São marcas de algum impulso que não soubemos – ou não desejamos – controlar. Na galeria do museu, recebem outra luz, novo brilho, outro estatuto: o de objeto do campo da arte. Souvenir, presente, fetiche, mercadoria, obra de arte: curto-circuito. Muito barulho por nada? Algumas artes podem ser fundamentalmente visuais, mas nem por isso serão “mais silenciosas”. Pelo contrário, fazem muito barulho, por tudo e por todxs.

Texto de apresentação da exposição Tanto Barulho por Nada,

MARGS, Porto Alegre/RS, 2017.

[1] RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Pág. 48.

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