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2018 | RELAÇÕES ORDINÁRIAS

Encontros Inesperados
Alfredo Nicolaiewsky, Artista e professor (IA/UFRGS)

Sandro Ka é um jovem artista que vem a público apresentando sua exposição individual – Relações Ordinárias. É um artista que trabalha a partir do conceito de apropriação, se filiando a um tipo de produção que tem como nomes mais conhecidos e recentes León Ferrari e Nelson Leirner. Como eles, Sandro utiliza objetos bastante conhecidos, como brinquedos e imagens populares de gesso, muitas vezes religiosas, formando conjuntos. Acredito, porém, que as semelhanças param por aí.

León Ferrari trabalha com estes elementos, principalmente as imagens religiosas, com um caráter extremamente crítico à igreja católica. Seu alvo é bem específico. Nelson Leirner, diferentemente, tem como características mais
marcantes o humor e a enorme acumulação de elementos.

Sandro opera em uma esfera um pouco diferenciada. Trabalha com poucos elementos de cada vez e cria um espaço cenográfico para eles. Estes espaços lembram pequenos palcos ou tablados onde acontecem encontros inusitados e instigantes. As relações propostas entre os objetos são aparentemente simples: São Francisco e os animais, São Jorge e o dragão, Vênus, a deusa da mitologia, tomando banho. Não devemos, entretanto, esquecer que estes são temas clássicos na tradição pictórica ocidental. O inusitado e cativante nestas obras é ver estas situações representadas a partir de elementos com origens e materiais tão díspares: a tradicional imagem de São Francisco em gesso, cercado por bichinhos de plástico; Vênus em uma banheirinha de boneca, Nefertite, a princesa egípcia, também uma reprodução popular em gesso da famosa escultura, junto a bonecas para as meninas brincarem de maquiagem, e assim por diante.

Não há nenhuma crítica, nem à igreja, nem à produção em massa de objetos, tão marcantes em nossa sociedade atual. O que se evidencia é um olhar curioso e carinhoso com todos os elementos da cultura de massa, sem distinções de origens, sem preconceitos. Mas também propõe uma discussão
sobre a nossa maneira de “ler” imagens e objetos, sobre os deslocamentos de sentido das coisas quando estas não se encontram nos lugares esperados, e principalmente sobre as possibilidades de criação de novos sentidos para objetos tão banais. Ou seja: são trabalhos falsamente simples, onde basta um olhar mais atento para começarem a surgir questões.

Mas o melhor mesmo é ver as obras do Sandro com o espírito aberto, tentando deixar o nosso lado criança se divertir e, ao mesmo tempo, nosso lado adulto refletir.

Texto de apresentação da exposição Relações Ordinárias 

Paço Municipal, Porto Alegre/RS, 2008.

Relações Ordinárias: apropriar, deslocar e fabular

Cassiano Stahl, Mestre em Educação (FACED/UFRGS)

Sandro Ka é um cínico. Irônico artista desalmado com nossas pobres ignorâncias de senso de humor e alheio à pobreza de nossos chistes jocosos, apenas sorri. Pequeno ordinário.

Então, nada mais adequado do que uma obra que verse sobre o tema: ordinário. Aqui já aparece o primeiro sinal da ironia de Sandro: a palavra que pode representar o safado, impetuoso, enganador.

E com que safadeza nosso pequeno-grande artista começa a brincar com nossas impressões da realidade quando, numa cestinha de 1,99 encontra um material absolutamente comum (ordinário, ei-lo), paga, leva e assume o pequeno bibelô de plástico ou gesso nas suas experiências Frankenstein. E ninguém percebe. O gatuno! Guarda um segredinho, junta uma, duas ou três pecinhas e voilà! Um objeto artístico novinho em folha, cheio de conexões formais e teóricas, feito das matérias mais simples e absolutamente comuns do planeta! Fácil? Pode esquecer! O mais irônico da coisa é que o menino passa dias pensando na combinação adequada e então, em algum momento. Click! Uma conexão se estabelece. Então o público olha e pensa “mas eu podia ter pensado nisso!”. Mas não, não pensou.

Falando sério. A obra de Sandro Ka concentra e trabalha muito mais do que meras relações formais. Abre os olhos para o contexto de um processo criador que se apresenta e reveste de elementos comuns do cotidiano. E que ao mesmo tempo os questiona. Pois na apropriação destes objetos, que inicialmente não possuem relações entre si, adquirem novos valores, desde seus elementos formais até a significância de suas palavras compositivas. É o caso de seus trabalhos inicias com a imaginária cristã. Como bem se sabe, a força da imagem dos santos da igreja é por demais intensa, arraigada num contexto de fé pública. Suas formas carregam simbologias profundas advindas de mais de 2000 anos de cultura construída sob bases judaico-cristãs e elementos do sincretismo de outras seitas pagãs. Um prato cheio para o artista atento, que vê nessa carga a possibilidade de “fazê-la em pedaços” e reconstituí-la junto a outros elementos sem relação aparentada ou instituída. Imagens de santos populares são cortadas em pedaços e depois guardadas em caixas, ou “relicários”, fazendo uma clara alusão aos relicários cristãos onde residiriam partes físicas dos santos de devoção (sangue, ossos ou restos de tecido).

Logo, Sandro passa a outro processo, mais elaborado: o de uma composição desses elementos com outros. Assim, se antes o objeto era pulverizado em sua totalidade, agora ele é reconstituído com outro elemento que cria um diálogo conceitual e físico. Duas condições dialeticamente colocadas em junção para a produção de um terceiro, um elemento de reconfiguração. Este elemento estrangeiro geralmente cria padrões inusitados, onde o resultado mais interessante reside na ironia e no humor. Pois desagradem-se os puritanos, os crentes ou os estetas da arte e do “bom-gosto”. A ironia que o objeto passa a carregar abala qualquer fé, seja religiosa ou no cunho estético de uma arte pensada dentro de um contexto platônico do belo e do bom.

Diversão é uma palavra que combina com o trabalho de Sandro. Diversão para ele! Tortura para nossa cabeça acostumada a instalações elaboradas e conceituações pseudo-estéticas. Mas engana-se pensar que, por lidar com brinquedos e objetos Kitsch, o trabalho do artista tenha alguma “ludicidade”. Antes, o irônico irrompe com força em cada objeto, que deixa de ter seu valor pequenino e tímido de brinquedo ou objeto de massa, produzido em série, para virar um conjunto operacional de raciocínio. Creio que esse pensar começa na análise da estética de inocência enganadora para depois se repensar o lugar que esse novo objeto ocupa. Não é mais o santo, nem o brinquedo de borracha, ou muito menos a peça de gesso. É um momento único, um flash de revelação do momento criador. É um mestiço num país estrangeiro que fala a língua estranha. E por isso mesmo pede por uma tradução – que sempre será incerta. Cada peça torna-se, assim, objeto móvel que pode perpassar e atravessar contextos e perspectivas inúmeras para se justificar.

De fato, o grande interesse da obra não é, apenas, o deslocamento conceitual dos objetos, ou sua apropriação e reconstituição. Tampouco somente a ironia. Talvez o tema central seja o de um deslocamento do espaço daquele que observa o trabalho do artista. Ora, quem não irá repensar os contextos de suas próprias crenças e valores (não só religiosas) quando se depara com a fragilidade dos significados que atribui aos objetos que fazem parte de sua vida? Quem também não irá pensar seu lugar nesse “espaço cênico” construído para direcionar o olhar e criar um efeito dramático de cena? O drama de sua própria vida?

Em filosofia, se pensa a arte enquanto Vida. Uma não descola-se da outra. O trabalho de Sandro Ka traz, portanto, relações com a vida cotidiana, mundana –ordinária. Desde sua pequenez até a irônica invenção e fabulação que dela fazemos. Como nós mesmos tentamos criar espaços cênicos para dar conta de uma vida que por vezes pode ser intolerável se vivida em sua dura realidade, sem ludicidade, sem essa brincadeira. Mesmo que irônica. O que seria pior que uma vida ordinária?

Talvez, uma vida sem relações.

Texto de apresentação do livro-objeto de desejo Relações Ordinárias,

Porto Alegre, 2008.

 

 

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