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2013 | DEIXA ESTAR

Deixa Estar
Bianca Knaak, Curadora, doutora em Artes Visuais e professora (IA/UFRGS)

Revisando os trabalhos de Sandro Ka (Porto Alegre, 1981), os quais devo aqui apresentar, convidei minha filha de seis anos para apreciá-los comigo, na tela do computador. A cada imagem ela disparava um breve, quase instantâneo parecer. Ela sabia que eram imagens de obras de um artista conhecido meu, por acaso ex-aluno, e isso a motivava a comentá-los com a propriedade e a responsabilidade que, apesar da inocência, assumia ares institucionais.

Sandro trabalha com brinquedos e imagens populares, algumas religiosas, outras artísticas, ícones da cultura ocidental, multiplicados e banalizados em cerâmica, gesso, plástico, resina e borracha, formando conjuntos de colorido agridoce. Isso facilitou o repertório e o vocabulário a ser empregado nos comentários. Mesmo assim me chamou a atenção à desenvoltura de Luísa em suas interpretações, à acuidade das observações e ao fato de que em momento algum ela me perguntou sobre a origem das imagens, ou as razões de Sandro Ka para gerá-las.  A certa altura, logo que apareceu na tela um trio de cabeças femininas (a cabeça de Nefertite em gesso branco, ladeada por duas cabeças de bonecas para maquiagem) ela exclamou:

– Duas meninas ao lado da rainha, como é mesmo o nome?

– Nefertite – respondi, orgulhosa de sua boa memória visual.

– Isso, essa mesmo! E duas bonecas gêmeas. Mas são bem diferentes da Nefertite…

– Por quê? – fui obrigada a perguntar.

– É só olhar! Olha o colar da Nefertite e das gêmeas, olha o que tem na cabeça de uma e na cabeça das outras.

– Humm – demonstrei espanto e ela, então, continuou:

– Os brinquedos não gostaram de ser cortados. E olha só as orelhas!

– As orelhas? – agora sim, realmente surpreendida, me aproximei da imagem para observá-la melhor – Ah é… As da princesa egípcia parecem maiores… Mais brancas?

– Pois é – ela confirmou, intrigada. E séria, acompanhado meu interesse, completou:

– Mãe, tu sabias que o Egito fica na África?

Terminou assim nossa conversa sobre “Só no Carão”, obra de 2007. Entendi ali, naquela vista mediada por um olhar disponível e sem amarras, que “o melhor mesmo é ver as obras do Sandro com o espírito aberto, tentando deixar o nosso lado criança se divertir e, ao mesmo tempo, nosso lado adulto refletir” (NICOLAIEWSKY, 2008).  Relato tudo isso porque aquele momento foi revelador para mim do quão difícil, e enriquecedor, pode ser conversar sobre arte contemporânea fora de seus circuitos de formação e consagração. E isso  me encheu de ideias!

ARTE É

Enquanto no meio artístico, para os jovens e para muitos especialistas, já não faz mais nenhum sentido indagar sobre o que pode ser ou o que não pode ser arte no mundo contemporâneo, para outros tantos, a pergunta “isso é arte?” ainda perturba. É que a ideia que temos de arte advém, usualmente, da ideia que construímos com a história da arte ao longo do tempo. E também porque nossas convicções éticas e estéticas foram fundadas numa ideia de valor universal e atemporal que no “espelho da arte contemporânea” se revela fragmentária, parcialmente presente em múltiplas manifestações e distintos conceitos, dificultando e questionando a necessidade de um consenso e de um acordo sobre o que vem a ser arte.

A arte é o exercício experimental da liberdade, afirmava o crítico de arte brasileiro Mario Pedrosa (1900-1981) já em meados do século passado. E, se a diversidade dos modos de ser, representar e estar no mundo é muito maior do que supõe a globalização econômica ou os vários e diários exemplos que a mídia nos oferece, como, então, a arte poderia responder a parâmetros universais? Assim, caro leitor, responder sobre o que é arte pode tornar-se uma tarefa tortuosa, e a própria pergunta pode ser considerada impertinente.

O fascínio pela racionalização da experiência estética, simbólica e artística nos levou a entender que a arte emerge da capacidade e da necessidade de produção simbólica do homem, mas sua expressão cultural afirmativa e constitutiva de sentido, portanto de conhecimento (e commodities), é histórica e social. E, como já disse Ernest Gombrich (1909-2001), historiador da arte nascido em Viena, não existe arte com A maiúsculo, existem somente os artistas. Então, tanto quanto a ciência avança com o trabalho dos cientistas, arte é o que os artistas fazem. Assim, em cada lugar, a arte assume fisionomia própria de seus artistas. E, socialmente, a racionalidade humana sempre encontra motivações para definir, redefinir, contemplar e demandar arte a partir de suas imagens, sejam estas de produção coletiva ou subjetiva.

Olhando para o mundo atual, a pergunta que talvez coubesse fazer seria: por que os artistas fazem arte? Ou, por que os artistas fazem a arte que fazem?

Na sociedade do espetáculo, depurada com o desenvolvimento da indústria cultural, as relações sociais entre pessoas são mediadas por imagens, como observou Guy Debord (1931-1994). Imagens que, sob os efeitos psico-estésicos (a ilusão, a fantasia, o glamour, etc.), tornam-se substitutas valorativas de outras representações e subjetividades. São projeções de ausências, de algo que não pode ser confinado a sua representação formal, digamos assim, num território de trocas simbólicas onde tudo é imagem. A publicidade sabe muito bem trabalhar as imagens para se relacionar com a sociedade do espetáculo. E é nesta sociedade, que produz e consome aparências para distribuição massiva e midiática, que todos nós encontraríamos, um dia, os quinze minutos de fama previstos pelo artista pop americano Andy Warhol (1928-1987) ainda nos anos 1960.

O QUE OS ARTISTAS FAZEM

Hoje, a distinção entre imagens do mundo cotidiano, imagens publicitárias e imagens do mundo artístico é quase impossível. Mas em arte, as menções ao banal, ao corriqueiro e popular, estão presentes com imagens, procedimentos e meios desde as inclusões plástico-poéticas das vanguardas modernas. E alta e baixa cultura, arte popular e arte erudita já não são categorias tão antagônicas depois do advento da indústria cultural, dos meios de comunicação de massa e dos movimentos pelos direitos de representação social e política das minorias marginalizadas, por exemplo.

Tais imbricações e aproximações podem ser entendidas como formas simbólicas de desvelar modos complexos de sentir e viver. Elas geram imagens e conceitos que nos emprestam fantasias que servem tanto para produção artística quanto para interpretações e recriações estéticas do mundo. Nos mais diferentes aspectos no mundo, nos mais variados roteiros na arte.

Num mundo globalizado e conectado à internet, acelerado e repleto de imagens de toda ordem, sem hierarquias estáveis e distinções categóricas entre “imagens da arte” e “imagens do mundo”, paradoxal e sintomaticamente, estaríamos então fadados ao desinteresse ou ao superinteresse pela arte? Ou viveríamos a iminência de ambas as circunstâncias?

Ao investigar artistas que recorrem, assim como Sandro, à citação ou à apropriação de objetos industrializados para sustentar suas criações, como León Ferrari (1920), Liliana Porter (1941) e Jeff Koons (1955), por exemplo, entendemos como as reconversões simbólicas engendradas pela indústria cultural, aliadas à força invocativa das imagens artísticas, repercutem na subjetivação coletiva das sociedades. Inicialmente porque invocam elementos presentes num imaginário popular e popularizado com a expansão da produção capitalista de mercadorias e pelos sistemas de comunicação e consumo. Depois, apropriando-se desse repertório comum, esses artistas acabam por colocar “dobradiças” na arte, como bem articula o crítico paulista Tadeu Chiarelli (1956), e se afirmam “agindo mais no mundo e com o mundo do que propriamente sobre o mundo”.

Essas reconversões, re-significações, num ecletismo ao qual se fundem as referências visuais urbanas, também ajudam a construir sentidos e modos de ser e estar consigo e com o outro. Geram processos que demandam atuações e indexações psicossociais que, mais do que isolar indivíduos e experiências estéticas em categorias, embaralham a miríade de referências disponíveis no mundo atual. E a arte contemporânea, propriamente dita, opera no contexto pós-indústria cultural, assim como também o seu sistema de legitimação se estabelece com esse know-how rizomático.

Numa engrenagem sócio-econômica e espetacular, que tudo capitaliza e consome, por vezes poderemos nos sentir socialmente manipulados a partir de nossos valores e crenças como brinquedos à mercê de um jogador sem limites. De repente, podemos nos sentir como brinquedos que “não gostaram de ser cortados”.

Esse sentimento é legítimo quando se reconhece que a mesma produção e distribuição massiva de informação, mercadorias e imagens que aproxima indivíduos e culturas globalmente pelo consumo, também estabelece novos códigos de acesso e distinção social pelo consumo. Trata-se do consumo conspícuo. Consumo que hierarquiza, discrimina e segrega. Consumo de “coisas”, mas também de sonhos, de identidades, de glamour, de fantasia.

Mas de repente descobrir-se imerso numa cultura de consumo e compreender o mundo contemporâneo é suficiente para compreender a produção dos artistas contemporâneos?

Os artistas costumam ser bons na codificação e instauração de novas realidades, e também para a desnaturalização de circunstâncias e idiossincrasias. É o caso de Sandro que, além de artista, é também ativista social. Não que seu trabalho esteja formalmente atrelado a essa militância. Não está e nem precisa estar. Mas, aos poucos, por meios sutis e quase subliminares, em alguns de seus trabalhos o próprio artista reconhece algo que se configura plasticamente em favor dos direitos humanos e dos direitos sexuais, questões às quais se dedica a promover e defender politicamente. Ele mesmo observa esse enlace, principalmente quando, ao conceber seu trabalho, “lança mão de objetos do universo pop e doméstico para abordar questões de sexualidade, identidade e diferenciação” (FIDELIS, 2012).

O artista é um cidadão. Seu trabalho é, então, nesse encontro político, o trabalho de um artista contemporâneo também de seu tempo social.  Emerge, num processo recíproco, o cidadão-artista, o artista-cidadão. É preciso separar?

O ARTISTA E A(própria)ÇÃO ASSUMIDA

Ao contextualizarmos o trabalho de Sandro Ka, no Brasil, desde as figurações dos anos 1960 e 1970 até os dias atuais, muitos nomes podem ser invocados pelo emprego de objetos e imagens que transitam entre alta e baixa cultura, entre o procedimento artesanal e o produto industrializado. E, nos anos 1990, esse acento operacional vai se destacar principalmente nos trabalhos de artistas jovens como Monica Nador (1955), Leda Catunda (1961), Jac Leirner (1961), Lia Menna Barreto (1959) e Téti Waldraff (1959), por exemplo.

No entanto, a lembrança mais premente na manipulação desse manancial pós-industrial sugerido pela assunção de uma cultura de consumo, pelo mercado de bens simbólicos e culturais, é o artista e professor paulistano Nelson Leirner (1932). Seus primeiros objetos apropriados, os chamados Múltiplos, datam de 1970, aproximadamente. De lá prá cá, seu repertório material está cada vez mais próximo das lojas de artigos populares e de importados de baixo custo, tais como mapas-múndi, estátuas votivas e deidades variadas, santas-ceias, “monalisas” magnéticas, bonecos de pelúcia e outros que tais.

É justamente nesse cenário nacional local-internacional, recente e includente, que começou o trabalho artístico de Sandro, ainda no início dos anos 2000. Inspirado pelos pós-modernismos em voga nos anos 1980 e 1990, que se valiam da citação, da apropriação, da paródia, do pastiche, do simulacro e, na literatura da meta-ficção historiográfica, Sandro, que já era desenhista e ilustrador, se deixa seduzir pelo objeto ao ingressar na universidade. Pelo objeto banal. Pronto e acabado. De manufatura anônima e anódina. Não um ready-made, duchampiano, conceitual. Mas um herdeiro degenerado, retiniano e fetichizado. Um objeto-mercadoria. De produção e distribuição massiva e com valor cultural agregado. Com estes, o gesto invisível do artista aparece ao singularizar esse objeto, compondo e composto em uma cena. O jovem artista então

(…) apropria-se de objetos produzidos em massa, os resgata em feiras, bazares, lojas e casas de comércio popular. Tem por estes objetos uma extrema devoção não religiosa e uma reverência constante, nada hierárquica. Os contempla, os escolhe e lhes proporciona a possibilidade de outras narrativas. Agrega a eles diferentes histórias e memórias, além de um novo sentido para aquilo que nos pareceu até então, inabilitado para o diálogo (CARLI, 2009).

Sandro seleciona seus objetos e, como num jogo, cria armadilhas para a construção de sentidos. Arma uma situação de interesse interpretativo, por assim dizer, a partir da reunião, do encontro entre objetos aparentemente tão desiguais em seus referenciais culturais e simbólicos. Seus objetos são agrupados e reconfigurados, num trabalho que ao final “não deixa rastros”, segundo o próprio artista, como se sua fatura excluísse qualquer procedimento manual, de planejamento ou de composição conceitual e volumétrica.  Então, a partir de suas cenas compostas, “a ironia que o objeto passa a carregar abala qualquer fé, seja religiosa ou no cunho estético de uma arte pensada dentro de um contexto platônico do belo e do bom” (STAHL, 2008). Seu trabalho não é normativo, não é dogmático. Mas ao mesmo tempo não escapa aos trâmites dessa visibilidade canônica, dessa institucionalização de subjetividades classificáveis. Mesmo quando, como no vídeo “Relíquias”, de 2007, ele reconhece o vazio que preenche esses circuitos imagéticos.

Sandro justapõe brinquedos, bibelôs e estátuas votivas. Em encontros poéticos, faz emergir dessas apropriações narrativas sobre a sistematização cultural pró-ativa da inocência lúdica que permeia a fé, a infância e a criação artística. “Altares de insignificâncias, reverência para banalidades. […] Brincar de juntar coisiquinhas vira uma grande ousadia, numa estratégia contemporânea de amarrar simultaneidades e múltiplas interpretações” (SANTOS, 2010). Não há, no entanto, um conteúdo programático a ser alcançado. Apesar das insinuações, deixadas em aberto para o observador.

O tratamento igualmente reverencial que o artista dispensa tanto aos brinquedos quanto aos bibelôs, réplicas de ícones da arte ocidental ou imagens religiosas é o que num só golpe nos provoca e suspende o riso. Pois em cada cena, o conjunto gentilmente arranjado nivela objetos de cultos díspares. Pelo inusitado, essa assemblage nos interpela contrastando nossos conceitos em relação ao significado cultural de cada objeto, ao redimensioná-los e unificá-los sob uma nova e mesma escala valorativa.

A perturbação provocada por essa operação artística não seria tão grande se não fossem as peças, os objetos que compõem cada obra, selecionados por suas propriedades plásticas, apelando (só para desafiar e desestabilizar) para um já arraigado consenso sobre valor estético relacionado à materialidade da obra, em especial a suas qualidades formais e cromáticas.

Ou seja: ainda que os observadores não se importem com definições sobre o que é arte, a maioria das pessoas tem expectativas sobre o que deve ser importante num objeto de arte. Assim, no trabalho de Sandro, “as qualidades estéticas dos objetos são um componente importante no engajamento das sensibilidades das pessoas. […] Forma, textura, cor, peso, etc., têm de corresponder, de alguma forma, às aspirações e crenças estéticas das pessoas.” (RICKLI, 2012). Sendo o trabalho de um artista, ainda que não se enquadre nos gêneros tradicionais das Belas Artes, esses valores costumam ser invocados pelo público em geral para a apreciação dos trabalhos. Havendo empatia, localizar estes valores plásticos, como vestígio de um fazer manual, aliado ao reconhecimento dos objetos como algo que lhes é familiar, pode ser o começo de uma infinita leitura das imagens.

É curioso notar que apesar dos milhares de anos que separam a pintura nas cavernas de Lascaux e a arte contemporânea, a observação de imagens produzidas pelo homem, sob qualquer técnica ou suporte, ainda guarde em si um desejo de encantamento através do olhar.

ATIVAÇÃO INSTITUCIONAL: O MUSEU EM EXPOSIÇÃO

Reunindo trabalhos recentes e destaques de sua produção pregressa, momentos-chave da pesquisa de Sandro Ka podem ser contemplados no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul. No conjunto da exposição, podemos observar algo da imaginação infantil, certa imaginária religiosa e ícones da história da arte ocidental em convergência nas criações do artista ao longo de aproximadamente dez anos, em diferentes suportes, com ênfase na assemblage. Em cenas bi e tridimensionais, desenhos, colagens e um vídeo, desfilam referências explícitas, ora mais, ora menos irônicas aos sistemas de crença que orientam tradições e condutas sociais no mundo ocidental.

Deixa Estar é a primeira exposição de Sandro no Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul e apresenta não apenas trabalhos de sua autoria – a maioria recentes – mas também um bom número de obras do próprio MACRS, muitas em exposição pela primeira vez. Obras de Alfredo Nicolaiewsky (1952), Daniel Escobar (1978), Elaine Tedesco (1963), Fernando Lindote (1960), Fernando Zago (1953), Lia Menna Barreto (1959) León Ferrari (1920), Milton Kurtz (1951 – 1996), Tatiana Pinto (1947), Téti Waldraff (1959), Tridente (1971) e Walmor Corrêa (1962) foram especialmente selecionadas para essa exposição, numa proposta institucional inovadora.

Trata-se de uma forma encontrada para apresentar temporalidades estéticas, diacrônicas e sincrônicas, que lastreiam a formação do artista Sandro Ka, ele mesmo com obras no Acervo do MACRS (além do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli e da Pinacoteca Municipal de Porto Alegre Aldo Locatelli), e destacam, nesse processo, o fundamental papel dos museus de arte através da visibilidade de suas coleções. Seja para a formação do público em geral, seja para a formação de novas gerações de artistas e colecionadores de arte.

A exposição Deixa Estar, idealizada para o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul, tem suas peculiaridades expográficas afinadas ao feedback sistêmico que os trabalhos em exposição suscitam. A começar pelo fato de que a exposição de Sandro abre, literal e fisicamente, uma oportunidade de observação de obras do Acervo do Museu, numa amostra contígua à sua. De forma pioneira na trajetória do MACRS, Deixa Estar apresenta nesse pequeno recorte obras que fazem parte de um repertório artístico que, em distintos momentos e de diferentes maneiras, inspiram, influenciam e dialogam com as motivações plásticas do artista convidado.

O objetivo principal dessa montagem, no entanto, é permitir ao público conhecer um pouco mais da cena cultural que estabelece os parâmetros artísticos de certa vertente contemporânea e elaborar, por aproximação e clivagem, as relações possíveis entre os trabalhos ali reunidos de forma inédita. Mas, sobretudo, e sendo obras de artistas colecionados pelo Museu, o conjunto em exposição também pode ser interpretado como “testemunhas a favor de uma ideia do curso da história da arte e da situação da arte” (BELTING, 2006). Antes de tudo, a razão de ser das coleções museais.

Os destaques do Acervo são de vários artistas que de alguma maneira tangenciam, nos trabalhos selecionados, referências ao nosso mundo cotidiano, seduzido por imagens massificadas onde se fundem tradições populares e eruditas. Também é possível ver, com as obras recortadas do Acervo, onde e com quem algumas abordagens encontram ressonâncias na história da arte brasileira. O que, em boa medida, colabora para o amadurecimento do campo artístico e o fortalecimento da função formativa e criativa do museu, pois, como também assinala Hans Belting (1935), historiador da arte alemão, “sem o museu a arte atual estaria não apenas sem pátria, mas sem voz e invisível”.

Por fim, se realmente expor num museu é também expor o museu, como vaticinou o artista francês Daniel Buren (1938), acreditamos que há qualquer coisa na experiência de ver que nos torna mais do que observadores. Por isso, no e com o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul a exposição Deixa Estar convida, já a partir de seu título, para um instante de suspensão do ego judicativo e para o exercício compartilhado da diversidade de expressão simbólica. Afinal, histórica e culturalmente a expressão artística é a própria diversidade em exercício contínuo e compartilhado.

Referências:

BELTING, Hans. O fim da História da Arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

CHIARELLI, Tadeu. 15 Artistas Brasileiros Colocando Dobradiças na Arte Contemporânea. In: 15 Artistas Brasileiros. Catálogo da exposição. São Paulo, MAM, 1996.

DE CARLI, Mara. Sobretudo – algumas relações ordinárias. Apresentação de exposição Sobretudo – Campos 9, UCS. Caxias do Sul, 2009.

FIDELIS, Gaudêncio. Parâmetros de Medida. Texto de apresentação da exposição A Invenção da Escala, Porto Alegre, MARGS, 2012

NICOLAIEWSKY, Alfredo. Encontros Inesperados. Texto de apresentação de exposição Relações Ordinárias – Paço Municipal. Porto Alegre, 2008.

RICKLI, João. The three mysteries. Crítica do trabalho “Os Três Mistérios”, publicada no blog Creativity and Innovation in a World of Movement CIM:Resource, Amsterdam, 2012.  http://www.open.ac.uk/blogs/cim/?p=142  Acesso em 09 de julho de 2013.

SANTOS, Carlinhos. Sobre invenções. Apresentação da exposição Relações Ordinárias – Centro Municipal de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho. Caxias do Sul, 2010.

STAHL, Cassiano. Relações Ordinárias: apropriar, deslocar e fabular. In: KA, Sandro. Relações Ordinárias: livro-objeto de desejo. Porto Alegre, edição do artista, 2008.

Texto curatorial da exposição Deixa Estar, MACRS, Porto Alegre/RS, 2013.

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